sexta-feira, janeiro 30, 2009

Carta aberta aos media nacionais

Ainda há poucos dias assistimos através dos meios de comunicação à espectacular amaragem forçada de um avião de passageiros nas águas do Rio Hudson, junto a Nova Iorque. Na altura, foi sobejamente discutido o valor e perícia do piloto, que salvou os passageiros de morte certa, e a celeridade das embarcações que imediatamente recolheram os passageiros do avião sinistrado. Muito menos atenção recebeu a causa do acidente: o impacto de um bando de aves que causou a avaria dos dois motores do avião causando a queda (controlada) do aparelho.
A ocorrência de grandes concentrações de aves nas rotas de aproximação ou partida de aeronaves é um dos mais sérios desafios à aviação, mesmos nestes tempos modernos em que a tecnologia tantas vezes nos parece fazer imunes ao mundo natural que nos rodeia. Ainda no ano passado um outro avião teve também um problema semelhante em Itália, tendo sido obrigado a uma aterragem de emergência devido a um impacto com aves. Parece assim natural e óbvio que a escolha das localizações dos aeroportos deve ter em séria consideração este tipo de riscos relacionados com a avifauna.
Não será então estranho que o governo português pretenda construir o novo aeroporto internacional de Lisboa na margem esquerda do Estuário do Tejo, na proximidade daquela que é irrefutavelmente a zona do país com maior densidade e abundância de aves? Se até em Nova Iorque ocorrem bandos de aves capazes de derrubar um avião, que dizer do Estuário do Tejo que alberga anualmente mais de 100000 aves aquáticas durante o Inverno? Isto, já para não falar do facto de esta ser uma Reserva Natural já desde 1976, tendo sido classificada como tal exactamente pelo valor que tem para a conservação da avifauna. Mas não tenho duvidas que é sobretudo a segurança dos futuros passageiros e não a das aves que mais preocupará os nossos governantes.
Uma das questões mais sérias são as aves que não usam apenas o estuário, mas também as áreas agricolas envolventes, nomeadamente o Maçarico-de-bico-direito. Desde 2005 que trabalho num projecto da Universidade de Groningen, na Holanda, que foca a migração desta espécie de ocorrência comum na região do Estuário do Tejo. Estas aves reproduzem-se no Norte da Europa, nomeadamente na Holanda, migrando depois para a África Ocidental, onde passam os meses de Agosto a Novembro em países como o Senegal, a Guiné-Bissau e o Mali. A partir de Dezembro começam a migração de regresso às suas áreas de reprodução, parando em Portugal num período entre o final de Dezembro e o início de Março a fim de se alimentarem, sobretudo em arrozais, para obter a energia necessária para completar os seus vôos migratórios. Durante este período, tenho verificado todos os anos que se chegam a formar bandos de mais de 45000 aves, que se alimentam durante o dia em arrozais em redor dos estuários do Tejo e do Sado, passando a noite em zonas de sapal à beira dos rios.
Isto significa que temos bandos de dezenas de milhares de aves a fazerem vôos diários dos sapais para os arrozais e de volta. Várias destas zonas de arrozal ficam localizadas a pouca distância do Campo de Tiro de Alcochete, local de momento preferido para a localização do novo aeroporto. Mais gravemente, os referidos movimentos diários entre os arrozais e os sapais na orla do estuário levam os bandos de aves, que repito podem englobar dezenas de milhares de aves, a passar ainda mais próximo da localização provável do futuro aeroporto. Caso as rotas de aproximação e subida sejam paralelas ao estuário, como foi falado como medida para evitar a avifauna do estuário, os bandos de maçaricos iram cruzar essas rotas nos seus movimentos diários e, tratando-se de aves que voam a uma altitude considerável, poderão causar um grave risco de impacto para os aviões.
Por outro lado, no decurso deste projecto de investigação, marcámos muitas aves com anilhas de cor, usando combinações de cores que permitem identificar os indivíduos no campo, com o auxílio de um telescópio. A análise das observações destes indivíduos marcados mostra que ocorrem também movimentos entre as diferentes zonas de arrozal, incluindo movimentos entre entre o Sado e o Tejo, aumentando as possibilidades de bandos de aves cruzarem as rotas dos aviões.
Mas não são só os maçaricos que usam estes arrozais, muitas outras aves ocorrem nessas zonas e fazem movimentos na margem esquerda do Estuário do Tejo. Dois casos óbvios são as cegonhas, que se deslocam entre diferentes zonas de arrozal, e as gaivotas que se deslocam também diáriamente entre o estuário e as zonas agricolas (e não só os campos de arroz) envolventes, como ficou demonstrado por um indivíduo a que foi colocado um localizador GPS, na Holanda, e que foi seguido durante um ano, tendo migrado até Portugal e passado parte do Inverno no Tejo, onde fazia incursões frequentes até aos campos agricolas do concelho de Benavente. Tanto as cegonhas como as gaivotas são aves de porte consideravel e, no caso das gaivotas, ocorrem aos milhares na região em causa.
Posto isto, parece ser um absurdo a decisão de colocar um aeroporto neste local, mesmo que assim o tenha defendido o famoso estudo do LNEC, que no que respeita à avifauna foi efectuado em Novembro e como tal falhou por completo o período de maior abundância de aves que ocorre entre Dezembro e Março. Por outro lado, convém lembrar que o estudo não disse que este era o local ideal, disse apenas que era menos mau do que a outra localização proposta, na Ota, tendo em conta não só factores ambientais mas também uma série de outros aspectos sobre os quais não me posso pronunciar por saírem fora da minha área de especialidade. Foi também falado na altura que o problema das aves seria facilmente resolvido alterando a localização dos arrozais. Este ponto é no mínimo risível e demonstra um tremendo desconhecimento da situação pois tratam-se de largas centenas de hectares de campos de arroz, num dos principais núcleos de produção de arroz do país. Mesmo que todos estes campos pudessem ser removidos, não podem ser transpostos para outro local, pois a rizicultura só pode ser efectuada em zonas alagadiças ribeirinhas, locais que devido ao seu valor agricola já estão todos aproveitados para esse fim. Por outro lado, se a deslocalização dos arrozais talvez pudesse resolver a situação dos maçaricos-de-bico-direito, não mudaria o facto que milhares de aves ocorrem nesta região e usam tanto as zonas estuarianas como os campos agrícolas, incluindo outros cultivos que não o do arroz, movendo-se um pouco por toda a zona em bandos de maior ou menor dimensão. Finalmente, convém lembrar que o Maçarico-de-bico-direito é uma espécie ameaçada, incluída na lista vermelha da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza) pelo que a destruição de uma tão vasta área de habitat crítico para a espécie, como são estes arrozais, não pode ser vista de ânimo leve.
Penso que é essencial uma discussão profunda sobre a problemática das aves no que toca ao futuro aeroporto, tanto por motivos de segurança, como por questões ambientais e de conservação da biodiversidade. Na minha opinião esta questão torna de todo inviável o projecto de um aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete. Infelizmente este tema não tem recebido grande atenção por parte dos meios de comunicação nacionais, pelo que decidi escrever esta carta na esperança de poder assim trazer para a praça pública esta problemática. Trata-se de um assunto de extrema importância que pode fazer a diferença entre um futuro de viagens aéreas em segurança de e para Lisboa, ou de novas imagens espectaculares de amaragens de emergência não em Nova Iorque, mas em pleno Tejo.

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